Luciano é uma atualização do Salvador da Pátria. E o resultado poderia ser igualmente trágico
Reinaldo Azevedo
07/11/2017 17h27
"Neste momento" é uma formação temporal, passageira, precária, de curta duração. Não quer dizer que não possa sê-lo, então, no momento seguinte, o que remete à dúvida ou à possibilidade, de que o advérbio "talvez" é expressão por excelência, embora este possa indicar um passo a mais rumo ao desiderato.
O "neste momento" pede o verbo no modo indicativo, o da certeza: "Neste momento, não sou". O talvez já ensejaria o subjuntivo, que é justamente o modo da dúvida e da possibilidade: "Talvez eu seja…".
Essa é a gramática da miséria da política. O próprio Luciano afirmou que não está se ligando a partidos. A sua proximidade seria com "movimentos", que é uma coisa mais fluida, menos compromissada, que pode se ater a abstrações éticas sem ter de enfrentar a vida real. Exemplo rápido: no mundo dos partidos, o "Governo X" teria de enfrentar resistências organizadas à reforma da Previdência. No mundo de Luciano, bastaria, de um lado da mesa, a convicção, o que logo silenciaria o resistente em razão de sua superioridade e bonomia éticas.
Sigamos na gramática. O adjunto adverbial de tempo na sua inteireza introduz a matriz subjetiva: "Neste momento da minha vida". Não por acaso, a quarta palavra — depois de um mero conectivo preposicional: "da" — é um pronome possessivo: "minha". E o vocábulo seguinte é "vida". Luciano será ou não candidato a depender desse seu "momentum". A palavra deriva de "movere", mover, movimento. O momento só o é se for dinâmico. Então cabe a pergunta: o que move Luciano?
A frase-símbolo, recheada de impulsos subjetivos é esta: "Quero impactar mais na vida das pessoas e usar as ferramentas que a vida me deu para fazer a diferença". Nada aí deixa a menor dúvida. Ele está determinado, vamos ver em que grau, a substituir a suposta lata velha em que se teria tornado o país por um bólido reluzente. E, por óbvio, revela-se o messianismo light, da bonomia, do bom papo, do homem que já conquistou o que poderiam lhe dar as aspirações materiais. Aquilo que a tantos afoba, que custa tanto esforço ao homem comum, ele já conquistou. Por isso o verbo no passado: "deu". E quem deu? De novo, é a "vida". As circunstâncias sorriram para ele.
Observem que, até agora, seu pleito presidencial — que é evidente — não se traduziu numa só ideia. Nem mesmo salvar o grafeno e o nióbio. Seu negócio — e a palavra vale aqui em sentido amplo — continua a ser aquele que sempre foi: "fazer a diferença". Luciano é uma espécie de Moisés midiático: subiu o monte e recebeu as instruções. Ele e mais ninguém. Ocorre que o sumo mítico de que decorre tal formulação supõe, depois, atravessar o deserto. Por enquanto, o deserto evidente é o de ideias. De Luciano e dos outros pré-candidatos. A diferença é que a sua postulação vem embalada pela suposição de que se dá contra o establishment.
Ocorre que establishment não há mais — não o político ao menos. Foi tragado pela voragem de moralismo policialesco, que juntou num mesmo caldeirão disfuncionalidades que pediam correção, o que é típico de todo sistema, com safadeza, malandragem e sem-vergonhice. E, vamos ser claros, em "momentos" assim — os de um país, não os de Luciano —, nada mais típico, tradicional e velho do que apelar ao "salvador", que viria, então, para nos conduzir à "idade de ouro". São dois dos mitos da política tradicional, conforme os descreveu Raoul Girardet no livro "Mitos e Mitologias Políticas".
Nesse sentido, Luciano é menos novo do que pensa ou do que pensam. Postulações assim só fazem sentido caso se parta da suposição de que o sistema político que temos é um artificialismo imposto contra a vontade dos brasileiros, à sua revelia. Grávidos, então, de amanhãs sorridentes que vão libertá-los, os brasileiros só estariam à espera do parteiro, que vai gerar esse novo ente coletivo.
É um caminho curto para a tragédia. Não por acaso, Luciano se encontrou "secretamente" — nem tanto se já estamos sabendo — com Joaquim Barbosa, o ministro que renunciou ao Supremo não porque não pudesse dizer lá tudo o que pensa. Ele o fez justamente porque podia. E o que tinha a dizer não era compatível com uma democracia de direito, eis o fato. A atuação do doutor no mensalão nunca escondeu o fato de que ele não entende direito, porque incompatível com a sua índole, o que é, por exemplo, "direito de defesa". Barbosa deixou o STF e se criou o mito de que o fez porque a corte era pequena demais para seus anseios. Não! Ela era ampla e diversa demais para sua estreiteza de ideias.
Sim, acho que Luciano pensa seriamente em ser candidato. Quer dividir com a gente esse novo "deslocamento" de seus quereres, esse seu novo "momento". Afinal, a vida já lhe "deu" tudo e, agora, ele quer "fazer a diferença", como quem já tivesse se cansado da fase da acumulação e vê chegada a hora da fase da distribuição.
A muitos escapa que sua candidatura nos viria como uma espécie de doação, de rito sacrificial, de concessão. Ele só deixaria o conforto que a vida lhe "deu" para nos salvar.
Para encerrar: "Você descarta, Reinaldo, que alguém vindo da televisão possa se candidatar, eleger-se e fazer um bom mandato?"
Eu não! Por que descartaria? Eu não aceito é a conversa mole de, primeiro, fazer-se candidato, testar as possibilidades, só porque ele vive um "momentum". Uma vez tornado viável, então vai nos dizer o que quer e o que pensa.
Eu não mandei cartinha para o Lata Velha. Não espero doação nenhuma de Luciano. Ele pensa o quê? Faço a ele a pergunta que faço aos outros políticos, que não têm a vantagem de se apresentar como o Moisés que já subiu o Monte para receber as Tábuas da Lei.
A política supõe atravessar desertos. Não é o cenário do homem realizado e feliz que decide dividir com a patuleia um pouco de sua realização pessoal e de sua sorte.
Sobre o autor
Reinaldo Azevedo, que publicou aqui o primeiro post no dia 24 de junho de 2006, é colunista da Folha e âncora do programa “O É da Coisa”, na BandNews FM.
Sobre o blog
O "Blog do Reinaldo Azevedo" trata principalmente de política; envereda, quando necessário — e frequentemente é necessário —, pela economia e por temas que dizem respeito à cultura e aos costumes. É uma das páginas pessoais mais longevas do país: vai completar 13 anos no dia 24 de junho.