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Dodge segue Constituição ao pedir suspensão de inquérito que investiga Temer contra a lei, e eis que decisão é tratada como ato de exceção

Reinaldo Azevedo

26/09/2018 07h46

Raquel Dodge e Michel Temer: desta vez, procuradora-geral cumpriu a Constituição

Talvez os historiadores, no futuro, se voltem para os dias que vivemos e tentem responder a uma questão: "Por que diabos os brasileiros, nos 30 anos da Constituição, decidiram que era hora de deixar de lado as regras básicas do Estado de direito? O que estava na raiz do surto de boçalidade e imbecilidade, que não poupou nem mesmo a imprensa, que deveria ser a grande vigilante do Estado de Direito?" Notem: essa é a minha hipótese otimista. Como países não fecham as portas, apenas pioram, pode ser que não se pergunte nada disso".

Por que faço essa afirmação?

Lembram-se daquela investigação sobre um jantar havido no Palácio do Jaburu, em 2014, com representantes da Odebrecht, no qual estavam presentes o então vice-presidente, Michel Temer, e os hoje ministros Moreira Franco e Eliseu Padilha? Pois bem: um dos delatores sustenta que ali se combinou um repasse de R$ 10 milhões, por meio de caixa dois, ao PMDB. O relatório final do inquérito da Polícia Federal diz ver indícios de corrupção passiva e lavagem de dinheiro.

Edson Fachin, relator do petrolão no Supremo — embora, destaque-se, esse caso não tenha nenhum vínculo com a Petrobras, ainda que venha a se provar verdadeiro… — deu um prazo de 15 para a Procuradoria Geral da República se manifestar a respeito. E Raquel Dodge, ora vejam, pediu que o inquérito contra Temer seja suspenso enquanto ele estiver à frente da Presidência da República. No caso dos ministros, defende que os autos sejam mandados para a primeira instância.

E o que há de espantoso nisso tudo? A coisa é noticiada em muitos meios como se Temer estivesse sendo objeto de algum arranjo, de alguma atitude de exceção de Dodge para protegê-lo. Nada disso! Ilegal, inconstitucional mesmo, é que estivesse sendo investigado em razão de uma acusação relativa a fato anterior a seu mandato.

Afinal, o que determina o Parágrafo 4º do Artigo 86 da Constituição? Lembro:
"§ 4º O Presidente da República, na vigência de seu mandato, não pode ser responsabilizado por atos estranhos ao exercício de suas funções."

Notem: o que feria a Constituição era a investigação em curso, não a suspensão do inquérito enquanto Temer estiver na Presidência. Essa é a decisão correta de Dodge. Errado foi o que ela e Fachin fizeram em fevereiro, quando houveram por bem incluir o presidente no inquérito, que investigava, inicialmente, os dois ministros apenas. Tratava-se de uma clara violação à Constituição.

Tentando se justificar, Dodge ensaia uma explicação:
"Ao requerer a inclusão da conduta do Presidente da República neste inquérito, em manifestação juntada aos autos, sustentei, na linha de precedentes do Supremo Tribunal Federal, que a Constituição permite a investigação de atos do Presidente da República anteriores ao exercício do mandato e estranhos ao exercício de suas funções, mas não permite que ele seja responsabilizado enquanto durar seu mandato", escreveu na manifestação desta terça-feira."

Parece brincadeira! Qual é o sentido do dispositivo constitucional? Justamente o de não gerar instabilidade política por ato eventualmente cometido fora do exercício do mandato. Leis semelhantes protegem mandatários democracias afora justamente para não haver aposta na instabilidade. Ora, é claro que investigação, quando menos, serve para tisnar a imagem do presidente. Alias, o mesmo Temer, na investigação surrealista sobre o decreto dos Portos, teve o seu sigilo bancário quebrado em março deste ano, retroagindo a 2013, quando não era presidente. Nesse caso, quem autorizou a burla à Constituição foi Roberto Barroso — aquele mesmo que dá uma entrevista à Folha desta quarta fazendo acusações graves e irresponsáveis contra membros do Supremo.

A que ponto chegamos! Independentemente da avaliação que se possa ter do governo em curso, uma coisa é certa: quando as prerrogativas constitucionais do cargo que ocupa são cassadas, não é o direito de Temer que está sendo esbulhado, mas o do presidente da República. Deveríamos todos ter nos espantado é com o esbulho da Constituição e da ordem legal.

Dodge só está reparando, e de modo mínimo, a agressão à Constituição que ela ajudou a promover.

Os tempos não andam particularmente iluminados. Foi justamente essa folia de considerar todos culpados até prova em contrário — numa inversão escandalosa do fundamento segundo o qual quem acusa é que tem de provar — que nos conduziu à situação eleitoral que aí está. Aliás, a determinação de desconstruir o governo Temer e de derrubar o presidente, levada a cabo por Rodrigo Janot, com atuação de ministros do Supremo, foi a pedra que concluiu a catedral do desatino.

Chega a ser estupefaciente que as pessoas possam se surpreender que uma procuradora-geral da República tome uma decisão que se sustenta de modo inequívoco na Constituição.

Vamos ver o que as urnas dirão. O fato evidente é que elas vêm embaladas pela descrença nas instituições, nos Poderes da República, nas leis. E esse "malaise" generalizado, esse mal-estar que se espraia tem como propagandistas, infelizmente, o Ministério Público Federal, setores do Judiciário e, depois da entrevista concedida à Folha desta quarta, também um destacado membro do Supremo, Roberto Barroso, que acusa colegas da corte, sem dizer nomes, de distribuir senhas para soltar corruptos.

A história ensina e instrui. Onde quer que regimes autoritários tenham se instalado em substituição à ordem democrática, uma coisa é certa: eles são antecedidos de um intenso trabalho para desacreditar as instituições.

Que os historiadores, no futuro, contem que conseguimos deter, a tempo, o desastre. Mas não estou muito certo disso para ser franco.

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Sobre o autor

Reinaldo Azevedo, que publicou aqui o primeiro post no dia 24 de junho de 2006, é colunista da Folha e âncora do programa “O É da Coisa”, na BandNews FM.

Sobre o blog

O "Blog do Reinaldo Azevedo" trata principalmente de política; envereda, quando necessário — e frequentemente é necessário —, pela economia e por temas que dizem respeito à cultura e aos costumes. É uma das páginas pessoais mais longevas do país: vai completar 13 anos no dia 24 de junho.


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