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Decisão de juíza no rolo bilionário MPF-Petrobras é aberração inédita

Reinaldo Azevedo

08/03/2019 22h05

Trecho do despacho em que a juíza deixa claro que não quer nem saber quem vai compor a exótica fundação que ela própria autoriza

O acordo espúrio, imoral, sem leis que o amparem, entre o Ministério Público Federal, as "Autoridades Norte-Americanas" (como gosta Deltan Dallagnol, com maiúsculas) e a Petrobras, que pode resultar na criação de uma das mais ricas fundações de direito privado do país, foi homologado pela celebrada Gabriela Hardt, juíza substituta da 13ª Vara Federal de Curitiba. É aquela magistrada que foi bastante aplaudida por alguns setores por ter condenado Lula no caso do sítio de Atibaia. É bem verdade que, em sua sentença, ela acabou trocando "sítio" por "apartamento" — aquele de Guarujá, que era matéria do outro processo, de que foi juiz o agora ministro bolsonarista Sérgio Moro… Se alguém pensou em algo como "copia/cola" é porque está de maus bofes. Afinal, gente, cumpre-nos o dever da franqueza, né? Pouco importa se sítio ou apartamento, o que interessa é condenar. A Justiça atravessou um novo umbral no país.

Mas deixo essa questão de lado agora. Voltemos à homologação do acordo feito pela juíza rigorosa. A íntegra está aqui .

A doutora topa quase tudo. Já explico.

Sim, ela gostou desse negócio de se criar, com o dinheiro da Petrobras, uma fundação de direito privado. Ela não especifica — e isso também não está no acordo, como vocês sabem, em que lei os bravos da Lava Jato se basearam para criar a fundação. Pra quê? Há certas omissões que a Justiça moderna se dá o direito de praticar. Não cita a lei, mas aprecia a coisa. E sua justificativa se baseia numa mistura de suposta defesa do interesse público com prêmio por mérito. Escreve a doutora sobre a destinação de metade da multa que a Petrobras pagou no Brasil e que vai financiar a tal fundação de direito privado:
"A outra metade será utilizada à constituição de uma fundação permanente, na forma de "endowment", e destina-se remédio dos efeitos da corrupção e ao fomento de atividades voltadas à implementação de uma agenda anticorrupção. Isso é especialmente importante já que os investimentos públicos, notoriamente escassos, para a implementação de medidas de combate à corrupção estão usualmente sujeitos a contingenciamentos orçamentários. Assim, na análise deste Juízo, não há dúvida que o acordo atende ao interesse público."

Entenderam? Como, a seu juízo, faltam recursos para se combater adequadamente a corrupção, então por que não usar a grana da Petrobras para  essa finalidade, ainda que seja numa fundação privada? Insista-se: ela não ancora seu despacho em lei nenhuma. Ela prefere deferir o arranjo exótico tendo como justificativa a falta de recursos. Mas ela não fica só nisso. Ela vai dizer agora por que o MPF teria não o direito, mas a licença moral, para fazer tal coisa:
"Cumpre observar o protagonismo do MPF e da Petrobrás na obtenção da concessão no acordo desta com as autoridades dos Estados Unidos. Sem a intervenção do MPF e da Petrobrás, muito provavelmente não seria possível a amortização de 80% da multa milionária pactuada no acordo com as autoridades daquele país, mediante pagamentos e investimentos de interesse coletivo no território nacional".

Com o devido respeito, senhora, trata-se de um escárnio a sua observação. Em primeiro lugar, o Ministério Público Federal estava cumprindo a sua função. Não prestava um favor nem ao país nem à Petrobras. Em segundo lugar, não há amortização. A empresa vai desembolsar o que foi determinado pelas autoridades americanas. A diferença é que parte considerável do dinheiro ficará no Brasil (80%). Mas não será recolhido ao erário, certo? Metade desses 80% — R$ 1,25 bilhão — vai para a tal fundação privada.

Juíza Gabriela Hardt: celebrada por sua dita severidade no caso Lula, em que trocou sítio por apartamento, ela foi, como dizer?, bastante compreensiva com o MPF

Omissão
A doutora Gabriela Hardt não quer ficar mal com os poderosos senhores da guerra do Ministério Público Federal. Ademais, todos pertencem ao mesmo país, não é?. São conterrâneos dessa pátria espiritual chamada "República de Curitiba". Os bravos do MPF pediram à juíza que endossasse as entidades e nomes previamente escolhidos para compor a aberração.

A doutora é da turma, mas não é louca. Sabe que a chance de, como se diz, essa coisa "dar ruim" é gigantesca. E aí faz o que me parece bater nos píncaros do escândalo: simplesmente se omite. Escreve ela:
"Consta do acordo que a formação do comitê de curadoria social, responsável pela supervisão da constituição do fundo, seria aprovada pelo Juízo (item 2.4.3.2). A providência é desnecessária. Não tem o Juízo condições de avaliar a reputação e a capacidade técnica dos possíveis integrantes do grupo. Então, a formação do Comitê, por delegação do Juízo, competirá ao MPF. Caberá ao MPF adotar as providências necessárias à formação do Comitê, apenas informando o Juízo quem são as pessoas que o integrarão e quais foram os critérios de seleção. Depois de constituída, a composição e gestão da fundação não se sujeitarão à prévia franquia jurisdicional."

Traduzindo: a juíza autoriza a aberração, diz que ela atende ao interesse público, alega a carência de recursos como uma das motivações para dar a autorização, aponta os méritos do MPF (como se este, reitero, estivesse cumprindo um papel excepcional, fora de sua competência regular), mas, na hora de se comprometer com o monstrengo legal — que não se ampara em nada —, ela pula fora, ela se exime, ela não quer saber.

Pode não ser agora, doutora Gabriela, mas seu despacho entrará para a história como uma das maiores deformidades do direito brasileiro.

A síntese fica assim:
1: a juíza homologou o acordo;
2: a juíza não citou uma miserável lei que o ampare;
3: a juíza o justifica alegando carência de recursos para combater a corrupção;
4: a juíza acata a fundação como fruto dos méritos do MPF;
5: mas a juíza não quer se comprometer com o que ela mesma autorizou, o que só reitera o caráter autocrata do acordo firmado pelo MPF.

Doravante, senhores cavaleiros da guerra contra corrupção, vocês devem se sentir livres para celebrar o que lhes der na telha. Como a corrupção é, sim, um grave problema no país, não tardará, e teremos algumas centenas de fundação de direito privado, criadas e geridas por procuradores (com representantes da sociedade civil, claro!), com o propósito de combater a corrupção que está na origem dos recursos que vão criar as fundações de combate à corrupção.

Entenderam?

O Estado de Direito chega a seu Estado de miséria no Brasil.

Infelizmente, a imprensa, no seu conjunto, ainda não reconheceu a gravidade da coisa porque se trata de admitir que foi trapaceada por um parceiro. Só agora caiu a ficha: quantos foram os que deram curso a vazamentos, fingindo não ver outras agressões à ordem legal, tudo em nome do combate à corrupção? Agora se dão conta de que eram e são meros peões de um projeto de poder, que está apenas no começo.

Não demora, e membros do MPF e setores do Judiciário afinados com esse projeto começarão a usar as suas fundações para criar escolas, distribuir bolsa de estudo e fornecer sopão para os necessitados.

Por enquanto, é um Estado dentro do Estado.

O projeto mesmo é capturar o Estado.

Não. Não vai dar certo no fim das contas. Nunca dá. Mas, enquanto isso, o país vai se enterrando mais um pouco.

O despacho da juíza Gabriela Hardt não é uma homologação. É uma litania fúnebre para o Estado de Direito.

 

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Sobre o autor

Reinaldo Azevedo, que publicou aqui o primeiro post no dia 24 de junho de 2006, é colunista da Folha e âncora do programa “O É da Coisa”, na BandNews FM.

Sobre o blog

O "Blog do Reinaldo Azevedo" trata principalmente de política; envereda, quando necessário — e frequentemente é necessário —, pela economia e por temas que dizem respeito à cultura e aos costumes. É uma das páginas pessoais mais longevas do país: vai completar 13 anos no dia 24 de junho.


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