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Entenda a questão sobre a homofobia e por que Supremo fez a coisa certa

Reinaldo Azevedo

24/05/2019 08h13

Homem se cobre com a bandeira LGBT: não se trata de uma questão de gosto, mas de uma questão de direito (Tânia Rego/Agência Brasil)

O bolsonarismo e, mais amplamente, a extrema-direita sofreram uma derrota no Supremo. Seis ministros já deram votos favoráveis numa Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão (ADO), movida pelo PPS, que pede que o tribunal declare a omissão do Congresso em votar uma lei que puna a homofobia e a transfobia. O relator é o ministro Celso de Mello, que, acertadamente, fez uma interpretação extensiva da Lei 7.716, que já pune "os crimes resultantes de preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional". O que lá se dispõe também valerá para crimes decorrentes de preconceito de "gênero, sexo, orientação sexual e identidade de gênero". Cinco outros ministros já o seguiram: Edson Fachin, Alexandre de Moraes, Roberto Barroso, Rosa Weber e Luiz Fux. Há quem esteja a afirmar que o STF usurpou uma competência do Congresso. Não nesse caso. Explico. Antes, é preciso fazer uma memória do caso.

Como já lembrei aqui, Mello foi duro em seu voto e se referiu explicitamente às tolices ditas pela ministra Damares Alves:
"Essa visão de mundo, fundada na ideia artificialmente construída, de que as diferenças biológicas entre o homem e a mulher devem determinar os seus papeis sociais, meninos vestem azul e meninas vestem rosa, (…) impõe notadamente em face dos integrantes da comunidade LGBT uma inaceitável restrição a suas liberdades fundamentais, submetendo tais pessoas a um padrão existencial heteronormativo incompatível com a diversidade e o pluralismo".

Mais:
"Versões tóxicas da masculinidade e da feminilidade acabam gerando agressões a quem ousa delas se distanciar no seu exercício de direito fundamental e humano ao livre desenvolvimento da personalidade, sob o espantalho moral criado por fundamentalistas religiosos e reacionários morais com referência à chamada ideologia de gênero".

O ministro também chamou a memória histórica:
"Os exemplos de nosso passado colonial e o registro de práticas sociais menos antigas revelam o tratamento preconceituoso, excludente e discriminatório que tem sido dispensado à vivência homoerótica em nosso país. Vê-se daí que a questão da homossexualidade, desde os pródromos de nossa história, foi inicialmente tratada sob o signo da mais cruel das repressões, experimentando, desde então, em sua abordagem pelo Poder Público, tratamentos normativos que jamais se despojaram da eiva do preconceito e da discriminação"

O PL 122
Para lembrar: a Câmara aprovou o PL 122, que alterava a Lei 7.716, que já pune "os crimes resultantes de preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional". Incluía no rol das discriminações "gênero, sexo, orientação sexual e identidade de gênero". A exemplo do que acontecerá com a interpretação extensiva feita pelo ministro.

O troço ficou parado no Senado e acabou arquivado. A bancada evangélica se opôs fortemente ao texto afirmando que as igrejas seriam impedias de expressar o seu pensamento, já que muitas correntes reprovam a homossexualidade. Relatora do projeto no Senado, a então senadora Marta Suplicy acrescentou uma ressalva: "A lei [da homofobia] não se aplica à manifestação pacífica de pensamento decorrente da fé e da moral fundada na liberdade de consciência, de crença e de religião". Não bastou. Ainda desta vez, a bancada evangélica se mobilizou para que o Supremo se mantivesse longe da questão, alegando tratar-se de assunto legislativo.

Na base da decisão, está o caput do Artigo 5º da Constituição — "Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade". Tal igualdade, observou o ministro, só pode ser garantida com a efetiva proteção a grupos vulneráveis: se a lei houve por bem punir os crimes de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional, por que razão se escusaria de fazê-lo no caso de gênero, sexo, orientação sexual e identidade de gênero?

O SUPREMO E O CONGRESSO
O Supremo não pode obrigar o Congresso a votar ou a mudar uma lei. Mas pode reconhecer, então, a omissão. Depois que o caso chegou a tribunal, o Senado retirou do arquivo a questão. Fez-se, por isso, nesta quinta, uma votação prévia no tribunal para saber se o julgamento da ADO deveria continuar ou se o melhor seria esperar o trâmite legislativo. Por nove a dois, tomou-se a decisão correta: prosseguir com a votação. Só Marco Aurélio e Dias Toffoli votaram contra. A simples procrastinação ou a rejeição à proteção a tais minorias manteria a omissão.

Sim, queridos leitores! No mundo ideal, deveriam ser desnecessárias leis que punissem racismo, homofobia, discriminação de gênero etc. No mundo real, os crimes que têm tais motivações existem.

Eu não contava viver um tempo em que o governo federal e seus acólitos ancorassem o proselitismo ideológico mais vil e rasteiro na discriminação de minorias. E isso, no entanto, aconteceu. Está em curso. Na campanha eleitoral, formaram-se verdadeiras correntes de ódio que tinham essas pessoas como alvos.

A estupidez é de tal ordem que, em fevereiro, um grupo de deputados entrou com um pedido de impeachment de Celso de Mello e de outros três ministros do Supremo que o haviam, então, acompanhado (Fachin, Moraes e Barroso). Quem encabeçou a iniciativa foi a deputada Bia Kicis (PSL-DF). Mello chamou a iniciativa de "manifestação de superlativa intolerância por parte dos denunciantes". E acrescentou: "A intolerância foi processualizada perante o Senado por essa absurda denúncia formulada contra quatro juízes desta corte porque formularam decisões absolutamente compatíveis com o regime constitucional".

Intolerância e ignorância sobre a ordem legal, embora Kicis seja advogada. A doutora deveria ler o que dispõe a Lei 12.063, que alterou a 9.868 e disciplina o julgamento da Ação Declaratória de Constitucionalidade por Omissão. O mesmo deveria fazer o deputado Sóstenes Cavalvante (DEM-RJ).

SE GOVERNO AGRIDE, ESTADO TEM DE PROTEGER
Reitero: uma lei que puna a homofobia deveria ser desnecessária, mas a realidade evidencia o contrário. E mais necessária se torna quando a discriminação ameaça se transformar em política oficial. Ou não temos um presidente da República que manda tirar do ar uma propaganda do Banco do Brasil porque viu nela o elogio da diversidade? Não estou dizendo que pudesse ser enquadrado na Lei 7.716, com ou sem a interpretação extensiva. Mas estou dizendo, sim, que espalha e endossa preconceitos.

A proteção a minorias e o direito à divergência são valores que caracterizam a democracia. Nas tiranias, também é possível concordar. Ademais, não se trata de garantir privilégios, mas de assegurar as garantias fundamentais do Caput do Artigo 5º.

Se a discriminação ameaça virar política de governo, é preciso que os alvos sejam protegidos pelo Estado brasileiro.

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Sobre o autor

Reinaldo Azevedo, que publicou aqui o primeiro post no dia 24 de junho de 2006, é colunista da Folha e âncora do programa “O É da Coisa”, na BandNews FM.

Sobre o blog

O "Blog do Reinaldo Azevedo" trata principalmente de política; envereda, quando necessário — e frequentemente é necessário —, pela economia e por temas que dizem respeito à cultura e aos costumes. É uma das páginas pessoais mais longevas do país: vai completar 13 anos no dia 24 de junho.


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