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Receita de Bolsonaro: criança trabalhando, com espingarda e algumas surras

Reinaldo Azevedo

05/07/2019 08h06

Criança trabalhando numa carvoaria. Bolsonaro vê poesia aí. Só falta dar ao garoto uma espingarda e lhe aplicar uma surras de vez em quando (Foto: (Arquivo ABr/)

Enquanto os defensores da reforma da Previdência na Câmara faziam um esforço danado para concluir a votação na Comissão Especial, o que acabou acontecendo só na madrugada desta sexta, o presidente Jair Bolsonaro se dedicava àquela que parece ser uma obsessão: criar ruído e confusão.

Assustado com a pressão de profissionais ligados à área de segurança, que passaram a chamá-lo de "traidor", tentou forçar a aprovação de um destaque que os beneficiasse. Não conseguiu. O esforço lhe rendeu o adjetivo de "ingênuo", pespegado por Paulo Guedes, ministro da Economia. Mas isso esteve longe de ser o aspecto mais deletério. Quinta-feira é dia de suas já tradicionais e cada vez menos vistas "lives".

A de ontem encontrou o presidente no melhor da sua forma, o que quer dizer, por óbvio, o pior. Aquele cujo governo depende visceralmente da reforma da Previdência — ou vai para o ralo — resolveu ignorar o tema. É que ele tinha algo que lhe pareceu mais urgente e mais importante: defender o trabalho infantil. E com um argumento técnico que lhe pareceu irrespondível: a sua própria experiência.

TRABALHO INFANTIL OU CRACK?
Afirmou:
"Olha só, trabalhando com nove, dez anos de idade na fazenda eu não fui prejudicado em nada. Quando um moleque de nove, dez anos vai trabalhar em algum lugar, tá cheio de gente aí 'trabalho escravo, não sei o quê, trabalho infantil'. Agora, quando tá fumando um paralelepípedo de crack, ninguém fala nada".

Quem disse que não fala? Por que o presidente não aponta, afinal, quais são e onde estão as pessoas que consideram normal e aceitável que uma criança consuma crack? Bolsonaro, seus filhos, muitos de seus aliados e suas milícias nas redes sociais gostam de inventar inimigos imaginários a defender a barbárie para que ele possa, então, barbarizar no que imagina ser o sentido contrário.

Como a estupidez que costuma apontar nos adversários só está em sua cabeça, resta uma coleção de asneiras que só serve para brutalizar o convívio social. Sim, Bolsonaro falando consegue ser pior do que Bolsonaro governando, o que não deixa de ser um alento. Afinal, existem alguns filtros dados pela própria organização social e política que impedem que todas as suas palavras se transformem em atos.

Eu mesmo já escrevi que é preciso ver com cuidado a questão do trabalho infantil. Uma criança que ajude os pais num empreendimento familiar, mas que frequente regularmente a escola e receba os devidos cuidados não deve ser posta na mesma chave de outra que esteja submetida a condições insalubres, exercendo atividade para terceiros ao arrepio da lei, o que ainda acontece nos grotões do país e, às vezes, em bolsões de miséria das grandes cidades. Se o presidente considera imperioso tratar do assunto nesse momento, e não é, custa fazê-lo de forma qualificada? Custa! É preciso estudar um pouco, ir além da impressão, do achismo, do chute. Mas aí não seria Bolsonaro.

Num outro momento notável, afirmou:
"Fiquem tranquilos que eu não vou apresentar nenhum projeto aqui para descriminalizar o trabalho infantil porque eu seria massacrado. Mas quero dizer que eu, meu irmão mais velho, uma irmã minha também, um pouco mais nova, com essa idade, oito, nove, dez, doze anos, trabalhava (sic) na fazenda. Trabalho duro."

Notaram? Não é que ele considere errado "descriminalizar o trabalho infantil". Ele só não o faz para não ser massacrado, o que, entende-se, seria uma grande injustiça. Ele bem que gostaria de livrar as criancinhas dessas amarras… Mas sabem como é… Há essas pessoas malvadas que querem coibir o trabalho infantil.

DESEMPREGO
Este senhor preside um país que tinha, no primeiro trimestre, segundo o IBGE, 13,4 milhões de desempregados (procuraram trabalho e não encontraram). Esse número sobe para 21,6 milhões caso se considerem os que já desistiram de procurar emprego e chega a 28,3 milhões se incluídos os subocupados: nada menos de 25% da força de trabalho potencial. Dos que estão empregados, apenas 74,7% estão formalizados. Nada menos de 11,1 milhões estavam na informalidade. E ele resolveu dedicar a sua "live" ao trabalho infantil.

Essas e outras barbaridades iam sendo ditas assim, como se estivesse num boteco, conversando com amigos igualmente iluminados, enquanto a Câmara tentava evitar o colapso do país e, antes desse, o colapso do seu governo.

Convencido de que teve uma vida venturosa e de que é exemplo a ser seguido, discorreu mais sobre a própria infância:
"Eu aprendi a dirigir, inclusive, em dois tratores da fazenda, com nove anos e dirigindo. Eu arava, inclusive. Irresponsabilidade? Nada, pô! Eu atirei jovem também e não tinha problema nenhum. O velho tinha uma espingarda, eu ia pro meio do mato e metia fogo, atirava sem problema nenhum".

"O PAU CANTAVA"
Isso tudo tinha um propósito:
"Hoje em dia é tanto direito, tanta proteção que temos uma juventude aí que tem uma parte considerável que não tá na linha certa. O trabalho dignifica o homem e a mulher, não interessa a idade. E naquela época o professor tinha como exercer sua autoridade em sala de aula. Então, ai de você se levasse uma bronca do professor e professora e teu pai ou tua mãe ficasse sabendo. Não era bronca não, o pau cantava. A juventude nossa está aí…"

Corolário: o Brasil tem jeito. É preciso pôr as crianças para trabalhar, dar a elas uma espingarda e, de vez em quando, aplicar-lhes algumas sovas.

É o que ensina o nosso Rousseau do tiro, porrada e bomba.

Deu para entender por que é preciso que o Parlamento recorra a todos os métodos que estiverem a seu alcance, nos limites da lei, para governar o Brasil enquanto ele andar por aí?

Foi o que se fez nessa quinta com a reforma da Previdência. Mas ele ainda pode atrapalhar bastante.

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Sobre o autor

Reinaldo Azevedo, que publicou aqui o primeiro post no dia 24 de junho de 2006, é colunista da Folha e âncora do programa “O É da Coisa”, na BandNews FM.

Sobre o blog

O "Blog do Reinaldo Azevedo" trata principalmente de política; envereda, quando necessário — e frequentemente é necessário —, pela economia e por temas que dizem respeito à cultura e aos costumes. É uma das páginas pessoais mais longevas do país: vai completar 13 anos no dia 24 de junho.


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