Moro, pavão vistoso, vira urubu do estado de direito e dá bicadas em Fachin
Reinaldo Azevedo
07/07/2019 16h29
"Pavão canta, Reinaldo?" Emite um som desagradável, mais agudo e mais longo do que o do marreco. Seu jeito de encantar é abrindo a cauda, inútil para qualquer fim que não seja seduzir a fêmea. Tem a sua virtude, claro!, para a fêmea de um pavão. Não para o estado de direito. Adiante.
Reportagens da Folha e do site The Intercept Brasil revelam que Moro tomou a iniciativa de estimular Deltan Dallagnol e a Lava Jato a vazar dados sigilosos da delação da Odebrecht que dizia respeito à Venezuela, com o claro intuito de influir na política local. Um problema: o vazamento era ilegal e punha vidas a risco. Mesmo assim, o vazamento aconteceu.
Eis que Moro resolveu recorrer ao Twitter na manhã deste domingo. E, ora vejam, não nega a existência das mensagens. E também não as assume. Mas as justifica. Escreveu às 10h04 desta manhã:
"Novos crimes cometidos pela Operação Lava Jato segundo a Folha de São Paulo e seu novo parceiro, supostas discussões para tornar públicos crimes de suborno da Odebrecht na Venezuela, país no qual juízes e procuradores são perseguidos e não podem agir com autonomia. É sério isso?"
Eis o antigo pavão nada misterioso transformado em urubu do estado de direito e da ordem legal. Embora acrescente o adjetivo "supostas" ao substantivo "discussões" — entre ele e Dallagnol, seu subordinado, e entre este e seus pares de Lava Jato —, é evidente que o agora ministro admite como virtuosos os diálogos. Reparem que trata o vazamento como um ato em defesa de juízes e procuradores da Venezuela.
FACHIN QUE VÁ LAMBER SABÃO
Ocorre que, assim como fez com Teori Zavascki quando relator do petrolão — divulgando, nas barbas do ministro, de modo ilegal, grampo também ilegal que envolvia a presidente da República —, Moro está a defender que se mande Edson Fachin lamber sabão, o substituto de Zavascki, morto em acidente aéreo no dia 19 de janeiro de 2017, e justificando a "suposta" iniciativa de sugerir o vazamento da delação da Odebrecht, crime que, com efeito, aconteceu e ainda está sob investigação.
E, como nós vimos, alertado de que o vazamento poderia elevar a tensão na Venezuela e insuflar até uma guerra civil, Dallagnol deu de ombros, afirmando que insurgir-se contra o governo era um direito dos venezuelanos.
O MAIS GRAVE
Se querem saber, esse é o episódio mais grave de todas as revelações trazidas à luz pelo site The Intercept Brasil.
Os acordos da Odebrecht, especialmente os que envolviam autoridades estrangeiras, possuem uma cláusula que determina o sigilo total e absoluto, com proteção à integridade física dos colaboradores. Isso é tão sério que foram os únicos casos que Fachin houve por bem manter sob sigilo quando decidiu pelo liberou-geral.
Há ainda uma cláusula, como sabe o relator, que determina o rompimento do acordo, mantendo-se todos os benefícios aos colaboradores no caso de tal sigilo ser violado pelas autoridades.
Assim, num único ato, ao vazar parte das delações, em vídeos publicados pela ex-procuradora-geral Luísa Ortega Díaz, dissidente do regime, os vazadores:
– mandaram Fachin às favas ao descumprir sua ordem;
– comprometeram a segurança física dos colaboradores e de suas famílias;
– violaram o acordo e a expectativa de segurança jurídica de entendimento celebrado com um órgão de Estado.
É gravíssimo! Ora, um colaborador ou é um criminoso — no mais das vezes — ou alguém que, ao cair na teia, cede os anéis para não perder os dedos, ainda que inocente. Fato é que, quando firma um acordo, espera do órgão estatal ética e cumprimento da lei. O que se viu foi vergonhosamente o oposto.
Não obstante, como se nota, Sérgio Moro parece se orgulhar do ocorrido. Resta em seu tuíte a sugestão oblíqua de foi um ato em defesa de juízes e procuradores perseguidos.
Que o vazador estivesse mandando, mais uma vez, um ministro do Supremo plantar batatas, bem, isso é o de menos. Que estivesse pondo vidas em risco, idem.
Ao sugerir o que sugeriu e escrever o que escreveu — e o crime foi cometido! —, o urubu da ordem legal resolveu fazer sombra em outros países da América Latina com sua cauda.
Sim! Ele já chegou a ser um pavão algo misterioso. Hoje, é só uma esfinge sem segredos. Não vê quem não quer.
'FACHIN É NOSSO, AHA, UHU"
Com a palavra, Edson Fachin, o último a saber.
Se bem que, como disse Dallagnol, "Fachin é nosso, aha, uhu".
Quer dizer, "deles". Dos urubus da ordem legal.
E, claro, resta o espetáculo da hipocrisia: Moro chama de criminoso o material que uma fonte anônima passou ao site de The Intercept Brasil. Mas, como se vê, parece considerar uma virtude o vazamento ilegal de uma delação, contra decisão do Supremo, ato que pôs vidas em risco. Pior: os procuradores que debateram o assunto, sob o seu estímulo, fazem digressões sobre a possibilidade de uma guerra civil num país vizinho como quem diz "hoje é domingo".
Sobre o autor
Reinaldo Azevedo, que publicou aqui o primeiro post no dia 24 de junho de 2006, é colunista da Folha e âncora do programa “O É da Coisa”, na BandNews FM.
Sobre o blog
O "Blog do Reinaldo Azevedo" trata principalmente de política; envereda, quando necessário — e frequentemente é necessário —, pela economia e por temas que dizem respeito à cultura e aos costumes. É uma das páginas pessoais mais longevas do país: vai completar 13 anos no dia 24 de junho.