Mendes: “Brasil viveu era de trevas no que diz respeito ao processo penal”
Reinaldo Azevedo
03/10/2019 06h56
Gilmar Mendes: é preciso recuperar as regras e os fundamentos do devido processo legal (Foto: Gabriela Biló/Estadão Conteúdo)
O ministro Gilmar Mendes proferiu um duro voto contra os desmandos da Lava Jato, lembrando as muitas vezes em que advertiu para ações que desbordavam do devido processo legal e dos códigos que nos regem, a começar da Constituição. A íntegra do seu voto está aqui.
Mendes referiu-se, em 27 páginas, às múltiplas reportagens do site The Intercept Brasil e parceiros, que revelaram que os próprios membros da corte eram tratados pelos procuradores ora como despachantes de seus intentos, ora como objetos de chacota.
Chamava, assim, atenção para o fato de que, ater-se, no caso em votação, ao que dispõe a Constituição corresponde a botar freio em que não tem freio nenhum.
Destaco, abaixo, trechos de seu voto:
AS PRÁTICAS AUTORITÁRIAS DA LAVA JATO
Ao contrário do que se poderia imaginar, nenhum projeto de combate à corrupção estrutural está imune a abusos de poder por parte dos imbuídos da tarefa persecutória. O tratamento indulgente para com os desvios de legalidade cometidos pelos agentes do Ministério Público e do próprio Poder Judiciário não se mostra compatível com um sistema de Estado de Direito. Precisamos aprender e progredir com os nossos equívocos do passado.
As mensagens divulgadas pelo Portal The Intercept revelam com bastante clareza os estratagemas e os atalhos adotados pelos membros do MP e do Judiciário para superar a divisão funcional entre defesa e acusação.
MORO: CHEFE DA FORÇA-TAREFA
A mim não restam dúvidas de que o Juiz Sérgio Moro atuou como verdadeiro Chefe da força-tarefa de Curitiba. Em diversos momentos, o magistrado direcionou a produção probatória nas ações penais e aconselhou a acusação, inclusive indicando testemunhas e sugerindo a juntada de provas documentais. Quem acha que isso é normal, certamente não está lendo a Constituição e nem o nosso Código de Processo Penal.
Ao apreciar denúncia formulada contra o suposto operador Zwi Skornicki, Moro deu por falta da prova de um suposto depósito em favor de Eduardo Musa, que seria determinante para a recepção da denúncia. Como um verdadeiro "Coach" da acusação, o juiz avisou a Deltan Dallagnon, o qual, tratando com os demais procuradores, informou que "tem um depósito em favor do [Eduardo] Musa e se for por lapso que não foi incluído, ele [Moro] vai receber amanhã e dá tempo" (https://oglobo.globo.com/brasil/moro-alertou-dallagnol-para-inclusaode-prova-em-processo-da-lava-jato-diz-revista-23785689).
O magistrado ainda tinha a função estratégica de sugerir aos procuradores a ordenação das fases da Operação, considerando, é claro, o seu interesse midiático. O quadro de esquizofrenia nas funções do Juiz não chega a passar despercebido pelos próprios membros da força-tarefa. Em mensagem atribuída à Dra. Monique Cheker, a procuradora demonstra ter clareza de que "Moro viola sempre o sistema acusatório e é tolerado por seus resultados" (Conteúdo disponível em: https://theintercept.com/2019/06/09/chat-moro-deltan-telegram-lava-jato).
Esse núbio entre julgador e polícia pode ter até algum fetiche, até de índole sexual, mas aqui devemos ter moderação! Julgador é órgão de controle, não é órgão de investigação. Como já pontuava anteriormente, com os desdobramentos da Lava Jato, as prisões cautelares foram se ampliando ao completo arrepio da jurisprudência desta Corte que consagra a sua mais absoluta excepcionalidade.
PRISÃO COMO TORTURA
As revelações do The Intercept vieram a demonstrar que usavam-se as prisões provisórias como nítido elemento de tortura. Custa-me dizer isso no Plenário, mas quem defende tortura não pode ter assento nesta Corte. Essas prisões eram feitas por gente como Dallagnol e como Moro. É preciso que se saiba disso: o Brasil viveu uma era de trevas no que diz respeito ao processo penal.
COAÇÃO ATÉ DA FILHA
Considero oportuno destacar alguns acontecimentos nesse sentido. Em uma das passagens reveladas pelo The Intercept, a Força-Tarefa tentava articular com autoridades portuguesas a captura de um foragido. Diante de dificuldades para obter sua localização, o procurador Dr. Diogo Castor de Mattos suscita a ideia de fazer uma operação "na filha do Raul Schmidt". O ousado plano consistiria em imputar a filha como beneficiárias de contas do pai no exterior e, a partir disso, apreender-lhe o celular, interceptá-la e pedir as quebras de sigilo fiscal e telemático. (disponível em: https://theintercept.com/2019/09/10/moro-devassa-filhainvestigado/)
Em outro episódio, fica clara a tentativa dos procuradores de coagirem investigados a delatar. Em mensagem de meados de junho de 2015, Deltan esboça plano para forçar a colaboração do investigado Bernardo Freiburghaus, apontado como operador de propinas da Odebrecht e que, à época, estava na Suíça. Numa conversa, Dallagnol revela a intenção: "Acho que temos que aditar para bloquear os bens dele na Suíça. Conta, Imóvel e outros ativos. Ir lá e dizer que ele perderá tudo. Colocar ele de joelhos e oferecer redenção. Não tem como ele não pegar" (https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2019/08/29/dallagnolvazou-informacoes-de-investigacoes-para-imprensa-aponta-dialogo.htm? cmpid=copiaecola&cmpid).
"IN FUX WE TRUST"
Aparentemente, nem os relacionamentos entre os membros desta Suprema Corte escapavam ao conhecimento dos membros da Forçatarefa, que previamente já contavam com os votos e posicionamentos de cada um de nós. Em uma das anedotas assaz curiosa, Dallagnol conta para os procuradores que "Fux disse quase espontaneamente que Teori fez queda de braço com Moro e viu que se queimou". Dallagnol teria revelado ainda que os procuradores da Lava Jato podiam contar com ele com o que fosse preciso. Ao saber do diálogo, Moro sagra: "In Fux we trust".
"FACHIN É NOSSO, AHA, UHU"
Até o próprio relator dos processos da Operação Lava Jato no STF, que sempre se destacou pela sua mais absoluta integridade e isenção nos seus posicionamentos, era tachado como um juiz conivente com a organização criminosa de Curitiba. Em outra conversa, Deltan aponta: "Caros, conversei 45 m com o Fachin. Aha uhu o Fachin é nosso". (disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/poder/2019/07/aha-uhu-o-fachin-enosso-disse-deltan-apos-encontro-com-o-ministro-do-stf.).
CÁRMEN FROUXA
Sequer a Ministra Cármen Lúcia foi poupada. Após tomarem ciência de que uma ADPF ajuizada pela Rede Sustentabilidade houvera sido distribuída à eminente ministra, os procuradores não revelam nenhum pudor ao acusá-la de "frouxa" (disponível em: da-lava-jato-chamou-carmen-lucia-de-frouxa-em-mensagens-vazadas)
A configuração de um quadro sistemático e reiterado de ofensas à legalidade e aos princípios constitucionais de ampla defesa dos investigados tornou-se incontroversa com o desvendamento de uma verdadeira máquina de provas ilícitas que era utilizada pela Lava Jato, muitas vezes de forma espúria e para enganar o Judiciário e o próprio STF.
(…)
RETOMO
Vale a pena ler a íntegra porque se tem ali um resumo bastante eficiente dos desmandos da Lava Jato. O combate à corrupção é coisa séria demais para ficar entregue a celerados.
Sobre o autor
Reinaldo Azevedo, que publicou aqui o primeiro post no dia 24 de junho de 2006, é colunista da Folha e âncora do programa “O É da Coisa”, na BandNews FM.
Sobre o blog
O "Blog do Reinaldo Azevedo" trata principalmente de política; envereda, quando necessário — e frequentemente é necessário —, pela economia e por temas que dizem respeito à cultura e aos costumes. É uma das páginas pessoais mais longevas do país: vai completar 13 anos no dia 24 de junho.