STF e PGR não podem ignorar diálogos da Vaza Jato. Ou: Das provas ilícitas
Reinaldo Azevedo
04/10/2019 07h07
Por que afirmo não ser do gosto dos brutos? Uma de quatro propostas fascistoides do conjunto das malfadadas "10 Medidas Contra a Corrupção" previa justamente a admissão de… provas ilícitas. Para condenar, é claro! Em tempo: as outras três medidas fascistoides eram a virtual extinção do habeas corpus, a licença praticamente sem limites para prisões preventivas e o teste de honestidade.
Assim, quando vejo esses valentes hoje a criticar as publicações de The Intercept Brasil e parceiros alegando a ilicitude do procedimento, encho-me de tédio. Eles queriam oficializar a ilegalidade para punir pessoas. E não custa deixar claro: invadir conversas privadas é crime. O trabalho jornalístico não é.
Ora, é evidente que a prova colhida ilegalmente não pode ser usada para a persecução penal. Mas o eventual surgimento de uma evidência ou prova, ainda que marcadas pela ilicitude na coleta, pode e deve ser considerado para aliviar a situação de um réu ou de um condenado. Ou alguém aí pretende advogar, para usar uma situação extrema, que uma pessoa deva cumprir pena por homicídio embora evidenciada a sua inocência?
Admitindo-se que tenha havido o hackeamento e que o material que hoje está com os ministros Alexandre de Moraes e Luiz Fux seja o mesmo que tem sido divulgado pela imprensa independente, parece apenas matéria de bom senso submetê-lo a uma perícia para atestar a sua autenticidade para que possa, sim, ser usado como peça de defesa.
Do conúbio entre juiz e procurador à seleção de alvos, passando pela manipulação do processo e por táticas de intimidação, a Lava Jato fez de tudo e mais um pouco.
Informa a Folha:
Em meio a questionamentos sobre os métodos da Lava Jato, o Supremo Tribunal Federal tomará iniciativas para validar juridicamente as mensagens de Telegram envolvendo integrantes da operação.
Por meio do ministro Gilmar Mendes, o tribunal vai acionar a PGR (Procuradoria-Geral da República) para buscar verificar a autenticidade dos arquivos. Outros integrantes do STF apoiam o movimento de Gilmar nos bastidores.
Se a apuração atestar oficialmente a veracidade das mensagens, estas poderão ser usadas em processos com eventuais impactos sobre decisões judiciais e agentes públicos que atuaram na Lava Jato.
As conversas de Telegram, obtidas pelo The Intercept Brasil e divulgadas pelo site e por outros veículos, incluindo a Folha, expuseram a proximidade entre Sergio Moro e procuradores e colocaram em dúvida a imparcialidade, como juiz, do atual ministro da Justiça e a conduta da força-tarefa, incluindo o chefe, Deltan Dallagnol.
A PGR poderá receber o material do STF, que requisitou as mensagens à Polícia Federal, ou da polícia, responsável pela investigação sobre o caso.
A senha para que a corte adotasse uma medida foi dada na quarta-feira (2), no plenário, pelo subprocurador-geral Alcides Martins, designado pelo novo procurador-geral, Augusto Aras, para representar a PGR naquela sessão.
Momentos antes, na sessão, Gilmar criticara os métodos da Lava Jato com base nas mensagens já divulgadas pelo Intercept. O magistrado leu trechos das conversas dos procuradores e apontou indícios de ilegalidades.
"Queria deixar aqui patente a minha preocupação com todas as colocações feitas pelo eminente ministro Gilmar Mendes. Não me cabe fazer nenhum juízo de valor, seja em relação às pessoas, seja em relação às instituições, [aos] atos, à gravidade deles que foi referida", disse Martins.
"Se me permite, ministro Gilmar, se pudesse encaminhar esses elementos à Procuradoria-Geral para que fossem avaliados por quem é de direito, porque o que referiu é de extrema gravidade."
Gilmar decidiu enviar ofício à PGR solicitando que a instituição analise indícios de desvios funcionais de membros do Ministério Público citados por ele, o que pode demandar análise das mensagens.
Integrantes da nova composição da PGR têm sinalizado interesse em analisar tecnicamente os arquivos de texto.
(…)
RETOMO
Ora, se o devido processo legal está maculado — e isso, em vários casos, está claro —, não resta à Justiça outro caminho que não fazer a devida correção.
Os que invadiram conversas de terceiros já estão respondendo por seus atos. Ninguém está reivindicando impunidade. Se a prova colhida ilegalmente não serve para dar início à persecução penal ou para agravar a situação de um réu, é evidente que ela pode servir de instrumento para que o Estado não chancele uma injustiça ou um abuso.
Diga-se outra vez: não se trata de chancelar métodos ilegais de coleta de provas que servem à defesa. De resto, o eventual hackeamento das conversas entre procuradores e de Deltan Dallangol com Sergio Moro não foi feito com o intuito de beneficiar A, B ou C. Não há nenhuma evidência de que este ou aquele planejaram a coisa com tal fim: "Ah, vamos bisbilhotar a conversa deles para entregar o material a advogados de defesa".
Isso não aconteceu. O cometimento do crime — sim, é um crime — trouxe à luz os porões da Lava Jato. Nenhum procurador vai responder na esfera penal pelas agressões à ordem legal. Afinal, aquela proposta fascistoide de Dallagnol não vingou.
Mas o fato é que crimes da Lava Jato, que permanecerão impunes, não podem servir de instrumentos de punição de terceiros.
Sobre o autor
Reinaldo Azevedo, que publicou aqui o primeiro post no dia 24 de junho de 2006, é colunista da Folha e âncora do programa “O É da Coisa”, na BandNews FM.
Sobre o blog
O "Blog do Reinaldo Azevedo" trata principalmente de política; envereda, quando necessário — e frequentemente é necessário —, pela economia e por temas que dizem respeito à cultura e aos costumes. É uma das páginas pessoais mais longevas do país: vai completar 13 anos no dia 24 de junho.