Dallagnol age como blogueirinha malcriada porque flagrado no “empregocídio”
Reinaldo Azevedo
17/12/2019 06h49
Deltan Dallagnol: "Ih, mamãe, destruímos empregos. E agora? Já sei. Vou ofender os que divergem" (Foto: F. Frazão/Agência Brasil)
Texto longo, leitores! Mas necessário.
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Sabem o que mais me incomoda no fato de procuradores da Lava Jato — seguindo o modelo habitual das blogueirinhas e candidatos a youtubers — recorrerem às redes sociais para criticar a entrevista concedida por Dias Toffoli, presidente do Supremo, ao Estadão? A falsa burrice, a demagogia barata (na verdade, muito cara!), a manipulação descarada da ignorância dos que se pretendem moralistas e letrados. E, por óbvio, os que mais se destacaram no gênero "blogueirinha bocuda" foram Deltan Dallagnol, coordenador da força-tarefa, e seu parceirinho, Roberson Pozzobon.
O conteúdo da entrevista foi ignorado. A íntegra está aqui. Há ali outras coisas com as quais concordo integralmente; com outras, nem tanto. Mas o que ele afirmou sobre a Lava Jato é absolutamente incontroverso. Até porque está no âmbito de uma medida tomada pelo ministro que há de ser o embrião de uma necessária mudança da legislação. Vamos recuperar o que disse Toffoli:
"A Lava Jato foi muito importante, desvendou casos de corrupção, colocou pessoas na cadeia, colocou o Brasil numa outra dimensão do ponto de vista do combate à corrupção, não há dúvida. Mas destruiu empresas. Isso jamais aconteceria nos Estados Unidos. Jamais aconteceu na Alemanha. Nos Estados Unidos, tem empresário com prisão perpétua, porque lá é possível, mas a empresa dele sobreviveu. A nossa legislação funcionou bem para a colaboração premiada da pessoa física. Mas a da pessoa jurídica não ficou clara. Então nós criamos um comitê interinstitucional para dar uma solução para esse problema. Muitas vezes o Judiciário pode ter essa função extrajudicial. Pela respeitabilidade, pode ser um árbitro para proposições e solução de problemas."
Observem que nem se trata de uma crítica à operação — e há muito a ser criticado —, mas à legislação. Ao se referir ao trabalho em si, o ministro foi até elogioso. Mas, é fato incontroverso, empresas quebraram às pencas. O grupo Odebrecht, por exemplo, emprega um quarto do que empregava antes e está em recuperação judicial. Outros quebraram.
A Lava Jato pode não ter atuado com o intuito de destruir empresas, mas destruiu. E as foi enfraquecendo antes mesmo de as investigações chegarem a uma conclusão porque vazamentos criminosos, nunca investigados, iam minando a credibilidade de entes que empregavam milhares de trabalhadores.
As respostas bucéfalas dadas por Dallagnol e Pozzobon ignoraram o que disse o ministro com todas as letras. Reproduzo mais um trecho da fala de Toffoli:
"Agora mesmo fizemos uma reunião extremamente importante a respeito do acordo de leniência [com as empresas processadas na operação Lava Jato]. Porque a Advocacia Geral da União entende de um jeito, o TCU de outro, o Cade de outro, o CVM, de outro, o MP de outro. Cada um acha que os acordos realizados têm que ter mais algum coisa. Quem é que pode arbitrar? Eu chamei uma reunião aqui. Já criamos um grupo de trabalho, um comitê executivo, para criar e ter uma solução efetiva até o final de março, para dar segurança jurídica."
Eis aí o problema. Esse é o debate de fundo que as duas blogueirinhas barbadas fingem ignorar, atraindo o apoio dos idiotas. Pouca gente se lembra que a Lei Anticorrupção, a 12.846, atribui à CGU (Controladoria Geral da União) a competência para celebrar acordos de leniência. O que fez o MPF, por meio da Lava Jato, foi sequestrar para si a prerrogativa.
Reproduzo trecho do livro "Leniência", dos advogados Walfrido Warde e Valdir Moysés Simão:
"O MPF chamou para si todos os acordos de leniência, arrogou-se competência exclusiva para celebrar todos os acordos de leniência da Lava Jato. E o fez com tanta convicção e a despeito da competência que a Lei Anticorrupção atribuía à CGU que criou mesmo uma central de colaborações (delações) premiadas e de leniência (a 5ª Câmara de Coordenação e Revisão do Ministério Público)
(…)
São emblemáticas as situações de impasse em que se inseriam empresas, cujos administradores ou controladores celebraram colaboração premiada e que, em razão de algum desalinhamento, tiveram sua pretensão à leniência descartada".
Isso quer dizer seguinte, leitor: a lei nem atribui ao MPF a competência para fazer a leniência, mas ele chamou a coisa para si. Não ficou só nisso: passou a haver um "combo", em que a leniência só se tornava possível se, na esfera penal, o delator, afinal, se comportasse de acordo com as vontades soberanas dos senhores procuradores.
Ocorre que nem por isso os demais entes perdiam as suas funções: CVM, Cade, TCU, Banco Central…
Saibam os leitores: empresas celebram acordos com o MPF, certo? Para que possam contratar serviços com a União, precisam do aval da CGU. Caso haja alguma questão relacionada à concorrência, têm de se entender com o Cade. Se houver infração à regulação de mercado, aí é com a CVM. Em havendo alguma instituição financeira no rolo, há o Banco Central. E cabe, finalmente, ao TCU zelar pela correção dos acordos. Resultado: desastre e quebradeira.
A isso se referia o ministro Dias Toffoli ao afirmar que a Lava Jato quebrou empresas. E quebrou. Essa é a questão que ele tenta equacionar quando sugere que se crie, segundo entendo, uma espécie de Câmara desses órgãos federais que apliquem, então, a sanção à empresa, de modo a ressarcir a sociedade pelo dano, mas sem quebrar o ente gerador de empregos, aquilo que, mesmo privado, é de interesse público. É evidente que é preciso descolar a delação dos "donos" — a esfera penal — dos acordos de leniência.
AS REAÇÕES ESTÚPIDAS
Quantos "comentadores" de Internet ou mesmo de rádio e televisão conhecem as regras do jogo — e a falta de regras? Não sou o único, claro, mas são poucos. Alguns babões por aí jamais leram a Lei 12.846 ou a Lei 12.850. Aí Dallagnol sai berrando:
"Dizer que a Lava Jato quebrou empresas é uma irresponsabilidade: É fechar os olhos para a crise econômica relacionada a fatores que incluem incompetência, má gestão e corrupção. (…) . É culpar pelo homicídio o policial porque ele descobriu o corpo da vítima, negligenciando o criminoso. Os responsáveis são os criminosos. Seguiremos aplicando a lei, que ainda é muito inefetiva no Brasil. Nos Estados Unidos, a prisão acontece depois da primeira ou segunda instância. Sem efetividade da lei, não há "rule of law' ou 'estado de direito"
O policial que descobre o corpo é uma coisa. O justiceiro que executa pessoas ao arrepio da lei é outra, não é mesmo? Toffoli está falando sobre salvar empresas e punir criminosos. Sob o pretexto de pegar os primeiros, Dallagnol não vê mal nenhum em mandar as outras para o brejo.
Mais: como vem falar em "rules of law" quem liderou a empreitada de chamar para o Ministério Público Federal uma competência que a lei atribui à CGU?
Notem que, ao se referir aos EUA, mais uma vez, ele se atém à questão penal — e Dias Toffoli nem tratou do tema. Demagogia para ignorantes! Tentativa vil de inflamar as redes sociais contra o ministro. Aliás, diálogos da Vaza Jato revelaram que o procurador resolveu escarafunchar o sigilo fiscal de Toffoli ao arrepio da lei. Lembram-se? É o que esse cara entende por "rules of law".
Pozzobon consegue ser ainda mais raso:
"Respeitosamente, Min. Toffoli, a #LavaJato não "destruiu" empresa nenhuma. Descobriu graves ilícitos praticados por empresas e as responsabilizou, nos termos da lei. A outra opção seria não investigar ou não responsabilizar. Isso a #LavaJato não fez".
Não, Pozzobon! A alternativa era cumprir o que prevê a Lei 12.846 e não atrelar a leniência a acordos de delação premiada, que, por seu turno, a Vaza Jato o demonstrou à farta, obedeceram a uma agenda política. Assim, se quiserem, podemos ser ainda mais duros: a politização da Lava Jato quebrou as empresas.
RULES OF LAW?
De resto, esses rapazes não deveriam falar assim, com esse desassombro, de corda em casa de enforcado. Como se colocar como paladino do estado de direito quem patrocinou aquele acordo pornográfico sobre o pagamento de multa que a Petrobras teria de pagar nos EUA e que, por entendimento ao arrepio da lei, a Lava Jato acertou que seria paga no Brasil.
Metade da soma bilionária serviria a uma fundação de direito privado. E a outra metade constituiria um fundo — a cada dia mais obscuro — para atender a supostos acionistas minoritários. Tão indecente era a coisa que a própria PGR recorreu contra o acordo, suspenso pelo Supremo.
"Rules of law", certo, Dallagnol?
Talvez haja algum prazer em enganar pessoas bem-informadas. Não sei. Não me dedico à safadeza. Mas me pergunto qual é o prazer que há em inflamar a militância de sempre, levar no bico os trouxas e os idiotas e atuar em parceria com vigaristas — incluindo os da subimprensa.
A verdade é que eles não têm resposta para o "empregocídio" em massa, causado pela Lava Jato, a que os valentes pretendem dar continuidade.
Sobre o autor
Reinaldo Azevedo, que publicou aqui o primeiro post no dia 24 de junho de 2006, é colunista da Folha e âncora do programa “O É da Coisa”, na BandNews FM.
Sobre o blog
O "Blog do Reinaldo Azevedo" trata principalmente de política; envereda, quando necessário — e frequentemente é necessário —, pela economia e por temas que dizem respeito à cultura e aos costumes. É uma das páginas pessoais mais longevas do país: vai completar 13 anos no dia 24 de junho.