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Reinaldo Azevedo

Cassando Eduardo: é falso que Carta permita a deputado falar qualquer coisa

Reinaldo Azevedo

04/11/2019 07h37

É falaciosa a conversa de que a Constituição permite a um parlamentar falar qualquer coisa. Não é assim tão difícil de demonstrar. Já chego lá. Farei antes algumas considerações.

A Câmara dos Deputados tem uma tarefa pela frente: responder à agressão de Eduardo Bolsonaro (PSL-SP). E a resposta caberá, num primeiro momento, ao Conselho de Ética. Também o Supremo foi acionado por parlamentares de oposição por intermédio de uma notícia-crime. Eduardo é acusado de incitação ao crime e de fazer a apologia de ato criminoso, Artigos, respectivamente, 286 e 287 do Código Penal. Por que mesmo? Ele acenou com a possibilidade de uma volta do AI-5 caso, na sua imaginação delirante, as esquerdas promovam protestos violentos.

A denúncia ao Conselho deve ser apresentada nesta terça. A notícia-crime já está com Dias Toffoli, presidente do STF. Pode ser enviada a Augusto Aras para que se posicione. O doutor não deve ver crime nenhum na fala, amparando-se no Artigo 53 da Constituição, segundo o qual "os deputados e Senadores são invioláveis, civil e penalmente, por quaisquer de suas opiniões, palavras e votos." Caso se defina um relator antes, este acionará a PGR. É pouco provável que um ministro da corte ordenasse o prosseguimento do processo na contramão do procurador-geral.

Aqui cabe um esclarecimento. Há dois entendimentos na Corte sobre a extensão do Artigo 53. Para alguns ministros, ele encerra um valor absoluto. Nessa perspectiva, uma parlamentar poderia dizer qualquer coisa. Se resolver subir à tribuna para defender, sei lá, terrorismo, tortura ou pedofilia, tudo certo! Seria tão aceitável, dado o tudo possível, como se dizer a favor da democracia, dos direitos humanos e da justiça. Obviamente, não é o meu entendimento.

A imunidade existe para garantir a liberdade do parlamentar dentro de uma faixa restrita: o ordenamento legal brasileiro. Mas então não se poderia defender a mudança de leis e da própria Carta? Ora, é claro que sim! Existem mecanismos também para isso. Estou entre aqueles que entendem que o Artigo 53 não pode servir como instrumento para a prática de crimes. E, por óbvio, pregar um golpe de estado ou fazer a apologia dele constituem, a meu ver, crimes. Logo, acho procedente a ação penal, mas duvido que prospere.

O mais provável é que o tribunal delegue a questão, na prática, para a própria Câmara, que dispõe de um Conselho de Ética com a atribuição de avaliar a quebra do decoro e recomendar a cassação de mandato, o que requer a concordância de pelo menos 257 deputados, em votação secreta.

Permanece, claro, o debate sobre a extensão do Artigo 53, mas observem que o dito-cujo define que os parlamentares são invioláveis "civil e penalmente". A punição por quebra do decoro não diz respeito à área cível ou penal. Estamos falando de coisa de outra natureza. Mais: a Constituição, combinada com o Regimento Interno da Câmara, abre caminho claro e objetivo para cassar um mandato por aquilo que o parlamentar disser. Querem ver?

O Inciso II do Artigo 55 define que "perderá o mandato o deputado ou senador cujo procedimento for declarado incompatível com o decoro parlamentar". A definição do decoro foge da pura subjetividade. As práticas que caracterizam a sua quebra estão definidas do Artigo 4º e 5º do Código de Ética. A primeira delas, que é o Inciso I do Artigo 4º, está assim especificada: "Constitui procedimento incompatível com o decoro parlamentar, punível com a perda do mandato, abusar das prerrogativas constitucionais asseguradas aos membros do Congresso Nacional".

Atenção: esse Inciso I do Parágrafo 4º do Código de Ética repete o que está escrito no Parágrafo 1º do Artigo 55 da Constituição, a saber: "§ 1º – É incompatível com o decoro parlamentar, além dos casos definidos no regimento interno, o abuso das prerrogativas asseguradas a membro do Congresso Nacional ou a percepção de vantagens indevidas".

Logo, parece-me inaceitável a leitura de que o Artigo 53 dá ao parlamentar a licença para dizer qualquer coisa. Tanto não dá que fica claro que o "abuso das prerrogativas" é incompatível com o decoro.

Pergunta-se agora: um deputado que defende um golpe na Constituição está ou não abusando da prerrogativa que lhe garante a própria Constituição? A pergunta chega a ser tola de tão óbvia.

Garantido amplo direito de defesa, o Conselho de Ética pode simplesmente arquivar a denúncia ou propor uma de quatro medidas, segundo dispõe o Artigo 10:
I – censura, verbal ou escrita;
II – suspensão de prerrogativas regimentais;
III – suspensão temporária do exercício do mandato;
IV – perda do mandato.

É difícil algo assim prosperar, admita-se, porque se teme que tenha início uma guerra para usar a cassação como instrumento de luta política. Ocorre que, desta feita, Eduardo Bolsonaro foi longe demais. Merece, sim, a cassação, mas, por óbvio, não é um troço corriqueiro.

Ajudo os deputados do Conselho de Ética e, quem sabe?, o plenário a tomar uma decisão: depois de defender um golpe de Estado, qual será o passo seguinte de um membro do clã Bolsonaro? Os senhores parlamentares vão decidir, na verdade, se há um limite na saga para depredar as instituições. Vocês estarão também mandando uma mensagem a Bolsonaro: ou a Câmara fica com a Constituição ou entra na fila da guilhotina. Vai ser o que?

Sergio Moro já deu o caso por encerrado.

Moro não manda na Câmara.

Sobre o autor

Reinaldo Azevedo, que publicou aqui o primeiro post no dia 24 de junho de 2006, é colunista da Folha e âncora do programa “O É da Coisa”, na BandNews FM.

Sobre o blog

O "Blog do Reinaldo Azevedo" trata principalmente de política; envereda, quando necessário — e frequentemente é necessário —, pela economia e por temas que dizem respeito à cultura e aos costumes. É uma das páginas pessoais mais longevas do país: vai completar 13 anos no dia 24 de junho.